Brasil flerta com desastre nuclear: declarações sobre “defesa nuclear” ameaçam compromissos internacionais e décadas de política externa pacífica
- Giovanna Rezende
- 11 de out.
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Atualizado: 13 de out.
O Brasil, historicamente reconhecido como defensor da não proliferação bélica nuclear e protagonista na construção de uma América Latina desnuclearizada, enfrenta hoje um movimento político preocupante. Declarações recentes de autoridades e propostas legislativas sinalizam uma tentativa de reacender a era nuclear no território brasileiro; um caminho que representa não apenas um retrocesso civilizatório, mas uma violação direta de compromissos constitucionais e internacionais que levaram décadas para serem construídos.
Nas últimas semanas, dois episódios trouxeram esse debate à tona de forma alarmante. O deputado federal Kim Kataguiri (União-SP) protocolou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que visa autorizar o desenvolvimento de armas nucleares no país, supostamente para fins de “dissuasão”. Paralelamente, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, declarou publicamente que o Brasil “pode precisar de defesa nuclear” diante da instabilidade geopolítica global. Essas iniciativas não são abstrações teóricas isoladas: representam uma ofensiva coordenada que merece análise crítica urgente.
A PEC da Ruptura: Quando a Constituição vira obstáculo
A proposta apresentada por Kataguiri trata-se de uma tentativa concreta de alterar o artigo 21 da Constituição Federal, que estabelece de forma inequívoca que toda atividade nuclear em território nacional deve ser restrita a fins pacíficos. Se aprovada, a emenda permitiria o uso de armas nucleares em três cenários: grave ameaça de invasão territorial, ameaça fundamentada de uso de armas de destruição em massa contra o país, ou como retaliação a ataques dessa natureza. Nas palavras do deputado, a ideia seria garantir a “preservação da paz por meio da força”.
Mais grave ainda: a PEC propõe explicitamente a retirada do Brasil dos tratados internacionais de não proliferação nuclear dos quais o país é signatário. Isso inclui o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares (TPAN) e o Tratado de Tlatelolco, que estabelece a América Latina e o Caribe como zona livre de armas nucleares — uma conquista diplomática que foi fundamental para a segurança regional.
A justificativa apresentada pelo deputado invoca conceitos como “autonomia tecnológica” e “direito à autodefesa”. Contudo, essa retórica mascara uma lógica perigosa: a ideia de que armas de destruição em massa podem ser instrumentos de paz. A chamada “dissuasão nuclear”, estratégia em que se ameaça com aniquilação para evitar ataques, é um cálculo baseado em premissas frágeis e errôneas. Pressupõe que todos os atores serão permanentemente racionais, que não haverá erros de interpretação, acidentes técnicos, rupturas institucionais ou decisões tomadas em momentos de pânico. Essas questões estão sendo cada vez mais debatidas por cientistas e pela sociedade civil devio a possibilidade de utilização de inteligência artificial em sistemas nucleares.
A história demonstra que essa confiança é ilusória. Durante a Guerra Fria, o mundo esteve à beira do holocausto nuclear em diversas ocasiões por falhas de comunicação, alarmes falsos e má interpretação de sinais. O incidente dos mísseis de Cuba em 1962 e o falso alerta de ataque soviético em 1983 são apenas dois exemplos de como a humanidade quase se destruiu por acidente ou engano. Apostar nessa lógica hoje, em um contexto de crescente polarização política e instabilidade institucional, é assumir um risco inaceitável.
A Normalização do Inaceitável
Quando o ministro Alexandre Silveira afirmou que o Brasil pode necessitar de “defesa nuclear”, ele não estava apenas expressando uma opinião pessoal. Sua fala, proferida durante evento oficial no Rio de Janeiro, representa uma tentativa de legitimar no Executivo um discurso que até então circulava apenas em franjas radicais do espectro político. Embora o Ministério de Minas e Energia tenha posteriormente emitido nota reafirmando o compromisso com o uso pacífico da energia nuclear, o estrago estava feito.
Declarações públicas desse tipo não são ingênuas. Elas servem para testar reações, sondar apoios, criar “fatos políticos” que alteram o espectro do debate. O que antes seria considerado absurdo passa a ser tratado como “questão em aberto”. O impensável se torna discutível, e o discutível, eventualmente, se torna aceitável. É uma tática conhecida na política: normalizar gradualmente aquilo que deveria permanecer fora dos limites do debate civilizado.
A gravidade dessa estratégia não pode ser subestimada. Quando uma autoridade ministerial menciona publicamente a possibilidade de militarização nuclear, ela envia sinais ao mercado internacional, aos parceiros diplomáticos e aos países vizinhos. Cria-se um clima de desconfiança que pode levar décadas para ser desfeito. A Argentina, que construiu com o Brasil um regime exemplar de cooperação nuclear através da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), passa a questionar as intenções de seu principal parceiro regional, que já anda em discordância em vários assuntos devido às linhas políticas opostas. Outros países sul-americanos se perguntam se devem buscar suas próprias “garantias de segurança”.
A Ameaça ao Sistema de Não Proliferação
O regime internacional de não proliferação nuclear, embora imperfeito, representa uma das poucas estruturas diplomáticas que contêm o risco de apocalipse atômico. O Brasil não é apenas signatário desses tratados, mas foi um dos principais artífices de sua construção.
O Tratado de Tlatelolco, assinado em 1967, foi o primeiro acordo a estabelecer uma zona livre de armas nucleares em uma região densamente povoada. Sua criação representou uma vitória da diplomacia latino-americana e um exemplo para outras regiões do mundo. O Brasil ratificou esse tratado em 1998, após décadas de debate interno que envolveu setores militares e científicos. Foi uma decisão consciente, debatida e que representou a escolha de um modelo de inserção internacional baseado em credibilidade e compromisso com normas multilaterais.
Além disso, o país é parte do TNP desde 1998 e assinou o TPAN em 2017, mas ainda não o ratificou. Entretanto, pelo artigo 18 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, mesmo antes da ratificação, o Brasil está obrigado a não frustrar o objeto e propósito desse acordo. Qualquer movimento em direção ao desenvolvimento de armas nucleares seria, portanto, não apenas uma violação moral, mas uma ilegalidade jurídica clara.
O Brasil integra a New Agenda Coalition (NAC), grupo formado também por Irlanda, México, Nova Zelândia, África do Sul e Egito, que reúne países de diferentes regiões unidos pelo objetivo comum de alcançar a eliminação total das armas nucleares. Criada com base no mesmo propósito estabelecido na primeira resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, há oitenta anos, a NAC atua como uma voz firme em favor do desarmamento nuclear completo e verificável, defendendo que essa é a única forma real de garantir a segurança global. A coalizão reconhece o TNP como o pilar central do regime internacional de desarmamento, fundamentado em três eixos indissociáveis: desarmamento, não proliferação e uso pacífico da energia nuclear. Nesse contexto, qualquer proposta de armamento nuclear por parte do Brasil contradiz frontalmente o papel histórico e diplomático que o país exerce dentro da NAC e mina sua credibilidade internacional.
As consequências de romper com esse sistema seriam devastadoras. Sanções econômicas internacionais, isolamento diplomático, perda de acesso a tecnologias sensíveis, comprometimento de parcerias comerciais e científicas. A invasão ilegal do Iraque pelos EUA em 2003, alegando a posse de armas de destruição em massa pelo país árabe, é um exemplo de reação da comunidade internacional.
Mais grave seria o precedente aberto: se o Brasil, com sua tradição de respeito ao direito internacional, decidir abandonar os tratados de não proliferação, que sinal isso envia a outros países que flertam com programas nucleares militares? Como os países da NAC podem voltar a confiar no Brasil depois disso?
A Falácia da ideia de"Segurança"
Defensores da militarização nuclear argumentam que o cenário internacional se tornou mais instável, que grandes potências violam tratados impunemente, e que os países precisam de “força” para serem respeitados. Esses argumentos, embora superficialmente atraentes, não resistem a um exame rigoroso.
Primeiro, poder nuclear não gera automaticamente respeito, gera medo e reações defensivas. Países vizinhos se sentiriam ameaçados e poderiam buscar suas próprias capacidades de dissuasão, criando uma corrida armamentista regional. A América do Sul, que conseguiu evitar esse destino durante a Guerra Fria, seria arrastada para uma dinâmica de desconfiança mútua e militarização crescente.
Segundo, o Brasil não possui a infraestrutura militar necessária para operar um arsenal nuclear de forma segura e eficaz. Não há doutrina operacional estabelecida, cadeia de comando clara para autorização de uso, sistemas de alerta precoce confiáveis ou capacidade de entrega (mísseis balísticos, bombardeiros estratégicos, submarinos lançadores). Desenvolver tudo isso levaria décadas e custaria recursos astronômicos que poderiam ser investidos em saúde, educação, ciência e infraestrutura civil. Não é à toa que as nove nações detentoras de arsenais nucleares, juntas, gastam 100 bilhões de dólares por ano em sua produção.
Terceiro, a credibilidade da dissuasão depende da percepção de que o país realmente usaria suas armas se necessário. Isso significa que líderes brasileiros teriam que se mostrar dispostos a ordenar a morte de milhões de civis inocentes em uma retaliação nuclear. Essa postura é incompatível com os valores constitucionais brasileiros e com a tradição diplomática do país, baseada em solução pacífica de controvérsias e respeito ao direito humanitário.
O Custo Humano e Ambiental
Qualquer discussão sobre armas nucleares que não coloque no centro a dimensão ética e humanitária é fundamentalmente desonesta. Essas não são armas convencionais ampliadas, são instrumentos de genocídio que causam sofrimento indescritível e intergeracional.
As explosões de Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945 mataram imediatamente cerca de 200 mil pessoas. Outras centenas de milhares morreram nos meses e anos seguintes devido a queimaduras severas, traumatismos por explosão e envenenamento por radiação. Sobreviventes sofreram por décadas com câncer, doenças genéticas e traumas psicológicos profundos. Suas histórias são testemunhos do horror absoluto que essas armas representam.
Além disso, mais de 2.000 testes foram conduzidos por potências nucleares, deixando legados de contaminação radioativa, deslocamento forçado de populações inteiras e impactos ambientais irreversíveis. Comunidades indígenas no Pacífico, povos nômades da Ásia Central e algumas áreas nos Estados Unidos e na Rússia continuam sofrendo os efeitos de doenças, infertilidade e degradação do solo e da água décadas após os testes.
De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, não existe resposta humanitária adequada a um ataque nuclear. Hospitais seriam destruídos, médicos e enfermeiros mortos, infraestrutura de saúde aniquilada justamente quando mais necessária. Estudos científicos recentes demonstram que mesmo uma guerra nuclear regional limitada poderia causar um “inverno nuclear”, com nuvens de fuligem bloqueando a luz solar, destruindo colheitas e causando fome global que mataria bilhões de pessoas, ocasionando vítimas por todo o globo. A única solução é garantir que essas armas nunca sejam usadas, e isso só é possível através de sua eliminação completa.
O Brasil é membro fundador da Iniciativa Global para Galvanizar o Compromisso Político com o DIH, ao lado de China, França, Jordânia, Cazaquistão e África do Sul, reafirmando seu compromisso com as normas humanitárias internacionais e reafirmando sua adesão aos princípios que limitam os efeitos dos conflitos armados e protegem civis. Além disso, o Brasil figura entre os países que coorganizarão, em 2026, uma reunião de alto nível sobre o respeito ao DIH, destinada a promover compromissos concretos entre Estados para garantir que a condução das guerras respeite a dignidade humana. Essa posição de liderança é incompatível com qualquer movimento em direção ao armamento nuclear, já que o uso ou mesmo a ameaça de uso de armas de destruição em massa contraria os fundamentos do DIH. Ao mesmo tempo em que o país se compromete internacionalmente com a proteção da humanidade, supor que "um dia o Brasil precisará do desenvolvimento de armas nucleares" seria um ato de profunda contradição.
Nós, cidadãs e cidadãos brasileiros, cientistas, organizações da sociedade civil e ativistas comprometidas com a paz, o desarmamento e os direitos humanos, expressamos profunda preocupação e repúdio diante das recentes declarações do Ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, sobre a possibilidade de o Brasil “precisar de defesa nuclear”, bem como da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) apresentada pelo deputado Kim Kataguiri (União-SP) que busca autorizar o país a desenvolver armas atômicas. Essas manifestações contrariam diretamente os princípios constitucionais e compromissos internacionais do Estado brasileiro, que há décadas se posiciona como um ator global em defesa da paz, da cooperação e do desarmamento humanitário.
Por tudo isso, exigimos que o Governo Federal, o Congresso Nacional e o Ministério das Relações Exteriores:
Reafirmem publicamente o compromisso do Brasil com o uso exclusivamente pacífico da energia nuclear;
Rejeitem qualquer proposta legislativa que permita o desenvolvimento, posse ou uso de armas nucleares;
Ratifiquem com urgência o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares;
Mantenham o Brasil na vanguarda das políticas de desarmamento e respeito ao Direito Internacional Humanitário, em consonância com suas obrigações constitucionais e internacionais.
Reafirmamos que a única garantia contra o uso e a proliferação de armas nucleares é sua eliminação total.
Referências
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Redação: Giovanna Rezende
Revisão: Felipe Scheibler










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