Conflito entre Camboja e Tailândia expõe uso de munições cluster e crise humanitária
- Giovanna Rezende
- 14 de ago.
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Uma nova escalada de violência entre Camboja e Tailândia reacende alertas internacionais sobre o impacto devastador das guerras contemporâneas, especialmente quando envolvem armas de efeito indiscriminado, como as munições cluster. O confronto, que teve início em julho, já resultou em dezenas de mortos e feridos, além de provocar o deslocamento de mais de 40 mil pessoas ao longo da fronteira dos dois países do Sudeste Asiático.
Em 24 de julho de 2025, tropas tailandesas reportaram que drones cambojanos sobrevoaram a área em frente ao templo Prasat Ta Muen Thom, seguida da aproximação de soldados cambojanos armados em direção à fronteira que delimita o território administrado pela Tailândia. O Exército Real Tailandês acusa os militares cambojanos de abrir fogo a cerca de 200 metros de distância. Simultaneamente, o Camboja alega que a Tailândia “violou a integridade territorial” ao lançar um ataque armado e restringir o acesso público ao templo. O ponto focal do conflito recai sobre disputas históricas entre os países que remontam a mapas coloniais e litígios sobre o Templo de Preah Vihear, que a Corte Internacional de Justiça atribuiu ao Camboja em 1962. Contudo, áreas adjacentes permanecem contestadas até hoje. Após um incidente em 28 de maio, quando um soldado cambojano foi morto em uma escaramuça no “Triângulo Esmeralda”, o cenário do conflito cambojano-tailandês se intensificou até culminar no confronto armado em julho. A atual ofensiva é considerada a mais violenta entre os dois países nos últimos 10 anos.
Os confrontos ocorreram em múltiplas frentes, incluindo as províncias tailandesas de Surin, Sisaket, Ubon Ratchathani e Buriram, e na província cambojana de Oddar Meanchey. Foram usadas armas pesadas como artilharia: foguetes BM‑21, tanques BMP‑3, drones e caças F‑16 tailandeses. Dados oficiais indicam que pelo menos 43 pessoas morreram e mais de 200 mil civis foram deslocados, sendo cerca de 138 mil na Tailândia e 60‑80 mil no Camboja. Hospitais, templos e escolas foram convertidos em abrigos improvisados, e houve relatos de danos a infraestruturas civis, incluindo um hospital em Sisaket atingido por foguetes e uma bomba explosiva perto de um posto de gasolina que feriu e matou civis, incluindo uma criança de oito anos.
Em 25 de julho, o Exército Real da Tailândia reconheceu oficialmente o uso de munições cluster durante operações militares contra alvos cambojanos. As autoridades militares alegaram que as ações foram conduzidas dentro dos parâmetros do princípio da proporcionalidade, com foco exclusivo em alvos militares e justificadas por necessidades estratégicas. Ressaltaram ainda que a Tailândia não é signatária da Convenção sobre Munições Cluster, instrumento jurídico internacional que proíbe o uso, armazenamento e transferência desse tipo de armamento. Entretanto, organizações humanitárias e especialistas em desarmamento alertam que as munições cluster são, por natureza, armas de efeito indiscriminado. Ao se dispersarem em múltiplas submunições, muitas das quais não explodem no impacto, essas bombas deixam resíduos explosivos ativos espalhados por grandes áreas, representando um risco constante para a população civil mesmo anos após o fim das hostilidades. De acordo com o Cluster Munition Monitor, em 2023, 94% das vítimas registradas por esse tipo de armamento eram civis, sendo a maioria crianças. A curiosidade infantil, aliada à falta de conhecimento sobre o perigo, transforma essas submunições não detonadas em armadilhas mortais.
O impacto humanitário do conflito também se revela no deslocamento forçado de mais de 300 mil pessoas, número que abrange civis tanto do lado cambojano quanto do lado tailandês da fronteira. Famílias inteiras foram obrigadas a abandonar suas casas às pressas, encontrando abrigo provisório em escolas, templos e centros comunitários transformados em instalações de emergência. Nessas condições, crianças, idosos e pessoas com deficiência enfrentam traumas profundos, separações familiares e a escassez de serviços essenciais como saúde, saneamento e acesso à alimentação.
O comércio bilateral, que movimentou cerca de 174 bilhões de baht em 2024, foi interrompido pela suspensão dos principais postos de fronteira. Estima-se queda de 60 bilhões de baht se as interrupções persistirem, afetando principalmente energia, agricultura e indústria fronteiriça. Na Tailândia, empresas cancelaram operações bilaterais e o setor de turismo e fabricação na área entre os dois países sofreu forte impacto. O Camboja, mais vulnerável pela menor resiliência fiscal, tem suas receitas turísticas e sua base produtiva mais fragilizadas. Em resposta, o governo tailandês aprovou um pacote de aproximadamente 572 milhões de dólares (18,5 bilhões de baht) para compensar vítimas e mitigar o impacto econômico doméstico. Familiares de civis mortos poderão receber até 8 milhões de baht, e feridos até 800 mil baht.
O presidente norte-americano Donald Trump adotou uma postura incisiva frente ao conflito, pressionando pela instauração de um cessar-fogo por meio de ameaças comerciais. Trump sugeriu que os Estados Unidos suspenderiam acordos bilaterais de comércio com Tailândia e Camboja enquanto os confrontos armados persistissem. Posteriormente, passou a integrar os esforços diplomáticos que culminaram em uma trégua provisória entre as partes. Em reconhecimento ao seu papel na mediação, o vice-primeiro-ministro cambojano chegou a anunciar a intenção do país de indicar Trump ao Prêmio Nobel da Paz.
Simultaneamente, a China se manifestou como possível mediadora, expressando publicamente sua preocupação com a escalada do conflito e reiterando apoio a soluções pacíficas por meio do diálogo bilateral e multilateral. Além disso, a Organização das Nações Unidas convocou uma reunião de emergência do Conselho de Segurança em 25 de julho. Na ocasião, a Human Rights Watch e a Campanha Internacional pelo Banimento de Minas de Minas Terrestre reforçaram o apelo para que ambos os Estados respeitem integralmente o Direito Internacional Humanitário, principalmente tratando da proteção de civis e da preservação de infraestrutura civil.
Apesar de um cessar-fogo ter sido declarado em vigor desde 28 de julho, há relatos de violações e reforço de tropas nos pontos fronteiriços. A reunião ministerial em Kuala Lumpur no início de agosto busca consolidar mecanismos de verificação. O Camboja demanda a libertação de 18 soldados capturados, cuja devolução permanece pendente. As tensões nas redes sociais e o aumento de discursos nacionalistas entre os povos também ameaçam a reconciliação.
Referências
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REUTERS. Thailand plans $572 million stimulus spending, will compensate border conflict casualties. 5 ago. 2025. Disponível em: https://www.reuters.com/world/asia-pacific/thailand-plans-572-million-stimulus-spending-will-compensate-border-conflict-2025-08-05/. Acesso em: 5 ago. 2025.
Redação: Giovanna Rezende










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