A engrenagem da violência: o papel das armas na escalada dos problemas sociais e humanitários
- João Vítor Mercês
- 8 de ago.
- 6 min de leitura
Atualizado: 1 de set.
![Pedras fictícias jazem em um cemitério em tamanho natural montado em Trafalgar Square, no centro de Londres, em 09 de outubro de 2003, pela Anistia Internacional e pelo grupo humanitário britânico Oxfam para representar mais de meio milhão de pessoas em média mortas com armas convencionais leves todos os anos. [Jim Watson/AFP via Getty Images]](https://static.wixstatic.com/media/d4f605_533638a6267c4d7fab6da3256c10474a~mv2.png/v1/fill/w_814,h_521,al_c,q_90,enc_avif,quality_auto/d4f605_533638a6267c4d7fab6da3256c10474a~mv2.png)
Já se perguntou sobre o porquê do termo “armas alimentam conflito”? Não é por coincidência. A ideia aqui é que a origem dos problemas que permeiam o comércio de armas não é causada pelas próprias armas, até porque a violência existe independentemente de seu uso. No entanto, as armas agravam, intensificam e sustentam diversos tipos de violência. Guerras, crime organizado, violência de gênero, fome e subdesenvolvimento são alguns exemplos de problemáticas que atravessam o comércio de armas. E claro, novamente: sem o abastecimento de armas, nenhum desses problemas deixará de existir, mas sua escala será grandemente reduzida.
Para tanto, tal questão depende do volume de armas importadas, produzidas e do tamanho do controle interno do país quanto à sua distribuição, como no caso do Japão, por exemplo, que é um país referência em controle de armas e contém uma população de mais de 120 milhões de habitantes, contando com índices anuais baixíssimos de homicídios por armas de fogo. Segundo levantamento, em 2021 houve apenas um registro de morte por arma de fogo no Japão, conforme dados da agência de polícia japonesa, sendo este registrado como o caso de Shinzo Abe, morto com uma arma artesanal, fora dos padrões convencionais e não adquirida no mercado legal, ou seja, uma exceção. No mesmo ano, os EUA tiveram mais de 45 mil mortes, enquanto o Brasil registrou pouco mais de 30 mil, segundo o Atlas da Violência. (G1, 2022)
Historicamente, o tráfico ilegal de armas atingiu um novo apogeu nos anos 90. Com o fim da Guerra Fria, a corrida armamentista fez com que todo modelo de arma se multiplicasse, com destaque especial às armas pequenas e ligeiras. Com a dissolução da União Soviética, milhares de armas pequenas dos estoques soviéticos se tornaram a arma favorita de grupos não estatais emergentes (terroristas, milícias, movimentos separatistas, senhores da guerra e outros grupos centrais pós-Guerra Fria). Embora o crime organizado transnacional já existisse, foi a globalização, com a internacionalização do sistema econômico e financeiro, crescimento dos fluxos transnacionais, tecnologias e comunicação de transporte (COSSUL, 2015, p. 5-6), que permitiu abastecer os conflitos no Terceiro Mundo, como ocorreu na África.
O continente africano tornou-se o mais afetado por este fenômeno ligado a um comércio ilegal de armas pequenas e ligeiras do fim da Guerra Fria, fáceis de manter e transportar, relativamente baratas para comprar e notoriamente difíceis de controlar. A África lida até hoje com as consequências do intenso abastecimento de armas que teve início nos anos 90. Além deste continente, as Américas, que historicamente tiveram pouquíssimos conflitos interestatais, mantém um dos maiores números de homicídios por armas de fogo no mundo. De acordo com o Global Study on Homicides 2023, o continente possui o maior índice de mortes por arma de fogo, representando 67% de todo homicídio no continente (UNODC, 2023, p. 14). Quanto a América Latina, em específico, persiste na região uma problemática humanitária com o tráfico ilegal de armas devido aos cartéis e organizações criminosas que têm acesso a uma grande quantidade de armas de fogo. A diferença é que, enquanto a maior parte das armas da África nos anos 90 vinha da União Soviética, o crime na América Latina se abastecia com o outro lado do continente, os EUA, que, apesar de atualmente e desde muito tempo terem muitas políticas rígidas quanto ao controle de armas em sua fronteira, fecham os olhos para o fluxo de armas que sai de seu território.

América Latina: violência crônica e o “rio de ferro” dos EUA
É fácil e correto afirmar que a América Latina e o Caribe são, se não a, a região mais violenta do mundo, já que a maior parte das mortes acontece fora de conflitos armados, resultado de um longo histórico de desigualdades sociais e econômicas que marcaram a região: a colonização, neocolonização, escravidão e anos de exploração de seus territórios, que perduram até hoje, e dos problemas modernos, como o tráfico ilegal de armas abastecendo a violência e o crime organizado na América Latina. Neste contexto, é essencial analisar a participação de países do Norte Global, em específico dos EUA na conformação deste cenário. É verdade que alguns países, como o próprio Brasil, que têm a maior parte das armas como produção nacional, sofrem menos influência externa pelo comércio de armas oferecido pelos EUA. Mas isso não é realidade para todos os países da América Latina.
Durante o governo de Richard Nixon nos EUA, que foi o responsável por criar o slogan de “combate às drogas” e movimentar toda uma agenda internacional voltada ao combate do crime organizado, houve uma contradição entre discurso e prática: ao mesmo tempo em que combatia o crime, o governo se envolveu em escândalos, com a CIA e o Exército norte-americano colaborando com cartéis e movimentos separatistas contrários a regimes latino-americanos alinhados contra os EUA. Ofereciam armas, recursos e os meios necessários para causar um golpe de Estado. O grande fluxo de armas que escapou para as mãos de grupos criminosos e separatistas por toda a América Latina dos anos 60 a 70 são encontrados até hoje, como é o caso de El Salvador, onde até poucos anos atrás metade de todas as armas de fogo apreendidas em cenas de crime eram armas exportadas dos EUA.
A situação contemporânea não é muito diferente. Dados do Small Arms Survey mostram que a apreensão de armas de fogo destinadas à América Latina e Caribe aumentou 120% de 2016 a 2023.
“Reportagem da CBS News revelou que entre 200 mil e 500 mil armas americanas são contrabandeadas anualmente para o México, formando o que é conhecido como o “rio de ferro”. Essas armas alimentam o poder de fogo dos cartéis e perpetuam uma espiral de violência. Apesar disso, as regulamentações internas sobre exportação de armas permanecem insuficientes, permitindo que grandes volumes de armamentos escapem de controles eficazes. Essa contradição reflete a dissociação entre as preocupações de segurança interna e a responsabilidade internacional dos EUA.” (UCHÔA, 2025)
Na América Latina, este grande fluxo de armas que vem dos EUA não implica apenas em uma questão criminal. Em países como o México e o Brasil, rifles de alto calibre são frequentemente utilizados por organizações criminosas em confrontos com forças policiais, resultando em milhares de mortes anuais. No Caribe, existem problemas similares, com gangues bem equipadas em lugares como Haiti e República Dominicana, algo que implica em sua soberania e cria zonas de conflito onde a violência reina. O impacto não se limita à perda de vidas. Instabilidades geradas por armas comprometem o desenvolvimento social e econômico e forçam o deslocamento da população, dificultando a implementação de políticas públicas. Em muitos desses casos, os governos locais já estão sobrecarregados com o combate ao tráfico de drogas e o controle territorial exercido, como com o Primeiro Comando da Capital, no Brasil, e são incapazes de lidar com o aumento da violência armada (UCHÔA, 2025).
Desta maneira, o comércio de armas sem a apropriada regulamentação tende a continuar a alimentar a miséria ao redor do mundo. A indústria armamentista, por sua vez, se beneficia diretamente desse descontrole. Em países como os EUA, que é o maior exportador de armas do mundo, esse setor de armas, que tem previsão de lucros bilionários ano a ano, exerce pressão no Congresso e em outros mecanismos regulatórios. Qualquer tentativa de medidas mais rigorosas é combatida com a prática de lobby e argumentos que recaem na retórica da preservação da liberdade individual prevista na Segunda Emenda constitucional norte-americana. Armas são, portanto, o combustível que alimenta ciclos de violência, e a chave para interrompê-los está no controle de seu fluxo. Problema que toma consequências diversas dependendo da região, desde a contribuição direta em conflitos armados e não armados até a perpetuação de violência de gênero e impactos socioeconômicos duradouros. Os dados disponíveis mostram que a proliferação e o uso indevido de armas, especialmente as leves e de pequeno porte, continuam a devastar comunidades e desestabilizar governos em muitos países, contribuindo para um sofrimento humano incalculável. O comércio ilícito de armas, em todos os seus aspectos, não é a única causa do enorme prejuízo às vidas humanas e da destruição de meios de subsistência na contemporaneidade, mas é um dos principais impulsionadores.
Referências
COSSUL, Naiane Inez. TRÁFICO INTERNACIONAL DE ARMAS NA FRONTEIRA BRASIL/BOLÍVIA: DINÂMICAS DA INSEGURANÇA REGIONAL. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DA ABRI, 21., 2015, Paraíba. Anais... [S.l.]: ABRI, 2015. Disponível em: https://www.seminario2014.abri.org.br/resources/anais/21/1406172970_ARQUIVO_ArtigoABRI-FINALNaianeCossul.pdf. Acesso em 27 jul, 2025
G1. Shinzo Abe: mortes por armas de fogo são raras no Japão; atirador usou artefato de fabricação caseira. G1, 8 jul. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/07/08/shinzo-abe-mortes-por-armas-de-fogo-sao-raras-no-japao-atirador-usou-artefato-de-fabricacao-caseira.ghtml. Acesso em: 27 jul, 2025.
UCHÔA, Roberto. Os Estados Unidos e o dilema da exportação de armas: uma contradição na América Latina. Fonte Segura, 15 jan. 2025. Disponível em: https://fontesegura.forumseguranca.org.br/os-estados-unidos-e-o-dilema-da-exportacao-de-armas-uma-contradicao-na-america-latina. Acesso em: 27 jul, 2025
UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Global Study on Homicide 2023. Vienna: UNODC, 2023. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/gsh/2023/Global_study_on_homicide_2023_web.pdf. Acesso em: 27 jul, 2025.
Redação: João Vítor Mêrces Alves










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