top of page
  • Instagram
  • X
  • TikTok
  • Youtube
  • LinkedIn
  • Whatsapp

Vítimas Invisíveis da Era Nuclear: Relatos de Hiroshima e dos Testes Nucleares nos EUA

  • Giovanna Rezende
  • 24 de jul.
  • 5 min de leitura

Em um mundo ainda marcado pelos riscos da corrida armamentista nuclear, as vozes das vítimas permanecem como faróis de memória, resistência e alerta. Durante o primeiro webinar da Hiroshima-ICAN Academy on Nuclear Weapons and Global Security 2025, dois testemunhos emocionantes revelaram as cicatrizes deixadas por diferentes faces da era nuclear: Kazuhiko Futagawa, um dos hibakusha mais jovens, exposto à radiação ainda no útero após o bombardeio atômico de Hiroshima; e Mary Dickson, sobrevivente dos testes nucleares conduzidos pelo governo dos Estados Unidos em território próprio, conhecida como downwinder. Apesar de separados por oceanos e contextos, seus relatos se encontram na dor, no silêncio forçado, na luta contra a discriminação e na decisão corajosa de transformar sofrimento em ação. Esta matéria reúne suas histórias, como um chamado à memória coletiva e ao compromisso urgente com o desarmamento nuclear.

ree

Testemunho de Kazuhiko Futagawa - in-utero Kibakusha

Kazuhiko Futagawa, um sobrevivente da bomba atômica de Hiroshima, compartilhou sua história pessoal como um dos hibakusha mais jovens. Ele foi exposto à radiação ainda no útero, já que sua mãe estava grávida na época do bombardeio em 6 de agosto de 1945. Seu pai e irmã mais velha morreram no ataque. Sua mãe, impossibilitada de entrar no centro da cidade no mesmo dia, começou a buscar seus familiares no dia seguinte. Futagawa nasceu oito meses depois do bombardeio e foi reconhecido como um hibakusha in-utero pelo governo japonês.

Atualmente, Futagawa atua como guia da paz em Hiroshima. Ele contou que viveu na cidade durante toda sua vida. Seu pai trabalhava como chefe do correio, em um prédio que ficava a cerca de 300 metros do hipocentro da explosão. Estava provavelmente em serviço no momento da detonação e foi imediatamente vaporizado pela explosão e pelas altíssimas temperaturas, que ultrapassaram os 3.000 °C. Sua irmã, com apenas 13 anos, também faleceu. Ela era uma estudante do ensino fundamental e estava trabalhando na demolição de prédios para criar áreas de contenção contra incêndios, como parte dos esforços de guerra. Havia cerca de 8.400 estudantes fazendo esse trabalho em Hiroshima na manhã da bomba.

Sua mãe, que tinha 32 anos na época, passou semanas vasculhando a cidade em ruínas em busca do marido e da filha, chegando inclusive à Ilha de Ninoshima, onde havia um hospital de campanha. Milhares de vítimas foram levadas para lá, mas muitas morreram rapidamente devido à falta de suprimentos médicos. A mãe de Futagawa acabou exposta à radiação residual, mas sobreviveu e criou sozinha cinco filhos, trabalhando em um posto dos correios por mais de 35 anos.

Futagawa também narrou um episódio em que sua mãe adoeceu gravemente durante sua infância e quase morreu. No leito de morte, chamou pelo nome de cada um de seus filhos e disse: “Ainda não posso morrer, não posso deixá-los”. Contra todas as expectativas, ela se recuperou. Nunca se queixava e mantinha o bom humor. Mesmo sendo hibakusha, ela nunca solicitou o “livro de saúde” que dava direito a cuidados médicos gratuitos, por medo da discriminação, queria proteger os filhos de serem rotulados. Somente anos depois da morte da mãe, Futagawa e seus irmãos encontraram guardado no fundo de uma gaveta o uniforme escolar de sua irmã falecida, cuidadosamente preservado. Esse gesto silencioso da mãe demonstrava a dor nunca expressa, a memória e o luto profundo. Futagawa doou a peça ao Museu Memorial da Paz de Hiroshima, em homenagem à irmã e à mãe.

Ele destacou que mais de 80 anos depois do bombardeio, ainda há cerca de 99.000 hibakusha vivos, com idade média de 86 anos. Muitos sofrem doenças relacionadas à radiação, enfrentam discriminação no trabalho, em relacionamentos e carregam o trauma em silêncio. Futagawa defendeu a importância de compartilhar essas histórias para evitar que o passado se repita e disse: “Se não acabarmos com a guerra, a guerra acabará conosco”, citando H.G. Wells.

Durante a sessão de perguntas e respostas, Futagawa respondeu a uma questão sobre como pessoas de outros países, indiretamente afetadas pela história das armas nucleares, podem ajudar. Ele disse que espera que todos que escutam sua história possam tomá-la como própria e refletir sobre o desarmamento a partir da realidade de seus países. Questionado sobre o que um jovem estudante pode fazer, ele afirmou que o mundo precisa mais do que nunca do fim das armas nucleares, e encorajou o engajamento ativo. Falou também sobre a discriminação enfrentada pelos hibakusha, especialmente aqueles que, como ele, foram expostos à radiação ainda no útero. Ressaltou que muitas pessoas não falam sobre isso, inclusive sua esposa, que também é de segunda geração. Ele compartilhou um episódio em que uma amiga perguntou se deveria se casar com um homem hibakusha, refletindo o estigma persistente.

Ao falar sobre como manter a esperança, Futagawa contou que visita frequentemente o Memorial da Paz, onde acredita que os restos de seu pai e irmã possam estar. Lá, renova seu compromisso com a paz. Também reza todos os dias em casa com seus netos. Disse que o conhecimento, a leitura e a participação em palestras o ajudam a manter a motivação e a paz interior. Finalizou encorajando os jovens a conhecerem a história de seus próprios países e refletirem criticamente sobre os eventos que levaram ao uso da bomba atômica. Segundo ele, os lados da guerra, vítimas e agressores, muitas vezes se confundem, e é preciso pensar cuidadosamente sobre o que é justiça.


Testemunho de Mary Dickson – Sobrevivente dos testes nucleares nos EUA

Mary Dickson é sobrevivente dos efeitos da radiação nuclear nos Estados Unidos, conhecida como downwinder. Seu testemunho trouxe à tona uma face menos discutida da era nuclear: as vítimas dos testes nucleares conduzidos pelo próprio governo americano em território nacional e internacional.

Durante o webinar, Mary compartilhou sua experiência pessoal como alguém exposta à radiação proveniente dos mais de 900 testes nucleares realizados no deserto de Nevada, especialmente nas décadas de 1950 e 60. Crescendo em Salt Lake City, Utah, ela e outras crianças viviam de forma inocente, brincando na neve, consumindo vegetais de hortas locais e bebendo leite fresco de fazendas próximas, sem saber que estavam sendo contaminadas por radiação. O governo, que realizava os testes nucleares a apenas uma hora de distância de Las Vegas, assegurava à população que “não havia perigo” e distribuía panfletos tranquilizadores, chegando a dizer que não se deveria “deixar os relatórios de contadores Geiger enlouquecidos nos preocupar”.

Mary contou que, enquanto crianças eram ensinadas a temer um ataque soviético, era o próprio governo dos EUA que lançava bombas e espalhava radiação sobre sua população. Como resultado, bairros inteiros foram afetados por doenças e mortes causadas por exposição radioativa. Mary afirmou com emoção: “Quando me perguntam qual teste me atingiu, respondo: qual deles não me atingiu?”. Ela também abordou os impactos globais dos testes, como os realizados nas Ilhas Marshall, onde os Estados Unidos detonavam bombas mil vezes mais potentes que a de Hiroshima, deslocando populações e deixando consequências de saúde devastadoras até hoje.

Além de relatar os danos físicos e emocionais, Mary destacou sua atuação como ativista. Trabalha ao lado de outros sobreviventes para expandir a legislação federal dos EUA, buscando compensação para mais pessoas afetadas por testes e mineração de urânio, por meio da Radiation Exposure Compensation Act (RECA). Também escreveu uma peça de teatro chamada Exposed, que recebeu reconhecimento nacional e foi apresentada em várias cidades, incluindo Nova York.

Mary participou recentemente como educadora convidada na 120ª viagem do Peace Boat, onde conheceu jovens ativistas de todo o mundo, incluindo sobreviventes do Japão e do Cazaquistão. Ela relatou que um jovem professor japonês lhe entregou um cartão com a mensagem: “Você me deu coragem. Vou carregar sua voz comigo.” Em sua fala final, Mary afirmou estar convencida de que a juventude tem o poder de salvar o mundo da maior ameaça existencial de nosso tempo, ao lado das mudanças climáticas: as armas nucleares. E concluiu com um alerta: “Uma guerra não precisa ser declarada para fazer vítimas.” Ela defende que é hora de reconhecer a dor silenciosa de tantas pessoas ao redor do mundo e agir para garantir que histórias como a dela e de tantas outras não se repitam.


Redação: Giovanna Rezende

 
 
 

Comentários


bottom of page